Depois de realizar amplo estudo sobre o projeto, cientista político diz que é preciso avaliar seus objetivos dentro da nova ordem mundial
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O Projeto Calha Norte surgiu em 1985. Ele foi concebido com o propósito de proteger uma área considerada vulnerável para a segurança nacional. Ao mesmo tempo em que previa o aumento da presença do Estado na fronteira, o projeto apontava a necessidade do desenvolvimento econômico-social dessa área, inclusive com o estímulo à migração.
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Em sua tese de doutorado, o cientista político Durbens Nacimento, realizou um amplo estudo sobre o Programa Calha Norte. A partir dessa experiência, ele avalia questões ainda mais amplas, como as questões geopolíticas que envolvem a Amazônia e a presença do Estado na fronteira.
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Uma das principais justificativas para a criação do projeto era a forte presença de cubanos no Suriname. Em 1985, o mundo ainda vivia sob a égide da Guerra Fria e o Brasil, do ponto de vista geopolítico, estava sob a influência direta dos Estados Unidos. Outro motivo era a existência das guerrilhas colombianas, principalmente o Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Além disso, o governo também queria impedir o contrabando na fronteira e os conflitos entre empresas mineradoras, garimenpeiros e índios.
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Para o pesquisador Durbens Nascimento, as dificuldades que as forças armadas encontraram para combater a Guerrilha do Araguaia, na década de 1970, também influenciaram a criação do projeto, embora isso não tenha sido divulgado oficialmente.
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Mas, na época da implantação, o projeto Calha Norte encontrou resistência na sociedade civil. "Havia todo um movimento para frear a tradição de intervenções militares e ditaduras na história brasileira. Era preciso redefinir o papel da relação entre estado e sociedade, no sentido de construir um tipo de democracia que não possibilitasse a continuidade dessa tradição autoritária do Brasil", conta o pesquisador.
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O Projeto Calha Norte foi divulgado, em primeira mão, pelo jornal Estado de São Paulo. A série de reportagens mostrava que o governo pretendia instituir um projeto militar nas zonas de conflito, principalmente em área da nação yanomami que seria diretamente atingida pelo projeto. A divulgação desses planos causou reações na sociedade civil e, principalmente, nas entidades de defesa dos povos indígenas, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
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Segundo o pesquisador, existe, no entanto, outra explicação para o episódio. "Os militares poderiam ter facilitado a divulgação intecionalmente porque queriam pressionar o governo no momento em que era discutida a possibilidade da convocação de uma nova constituição e a criação de novos projetos. Tratava-se de barganhar recursos para o projeto", observa. Embora não tenha uma opinião fechada sobre o assunto, Durbens acredita que uma hipótese não está dissociada da outra. "Hoje acho essa questão secundária. Uma hora eles teriam que se expor para aprovar o projeto.", conclui.
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Nessa primeira fase do Calha Norte, houve a construção de quartéis, o deslocamento de militares para a região, uma série de obras e ações também foram implementadas na fronteira. Durante a realização da pesquisa, Durbens também fez um estudo sobre o financiamento do projeto ao longo dos anos. O cronograna inicial do projeto, de 1985 a 1990, foi cumprido, mas do ponto de vista dos recursos isso não aconteceu. Só nos últimos anos o montante estabelecido foi repassado. A partir de 1990, o projeto entrou em crise e praticamente foi abandonado. No governo de Fernando Henrique Cardoso foi a vez da criação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que passou a ser incentivado. Também foi criado o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam).
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O panorama começou a mudar em 1996 quando o governo FHC estruturou a nova política de defesa nacional. Ela incorporou a reflexão sobre a conjuntura regional, nacional e internacional, em que se destaca o reconhecimento de toda uma mudança na ordem internacional que já não era a mesma da época da Guerra Fria. Foi preciso, então, instituir novos conceitos, pensar a segurança nacional dentro de novos parâmetros internacionais, que não mais se resumiam a um mundo bipolar.
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"Você tem agora um mundo multipolar, do ponto de vista das relações comerciais e financeiras, e ao mesmo tempo unipolar, visto que uma única potência, os Estados Unidos, tem capacidade de impor a sua vontade aos demais países, dado que possui instrumentos de guerra que nenhum outro possui", obeserva o pesquisador.
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O novo contexto em que surgiu a nova política de defesa nacional também inclui questões como o terrorismo, o contrabando, o narcotráfico e a biopirataria na Amazônia. Existe a dificuldade de se definir onde e como combater o inimigo. O pensamento militar e a nova política de defesa nacional passaram a refletir essa mudança.
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Projeto ganha revitalização no governo FHC
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Em 1997, o projeto Calha Norte foi revitalizado e, em 2000, ele tornou-se programa prioritário na gestão do ministro Geraldo Magela Quintão, no governo Fernando Henrique Cardoso. Entendeu-se que não havia contradição entre permanecer na fronteira com a criação de equipamentos urbanos e incrementar a vigilância aproveitando o que há de mais avançado no campo da tecnologia da informação, como por meio de satélites, aviões e todo um aparato informacional.
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Já no final do governo FHC, entre 2001 e 2002, começou a retomada do financiamento e no governo Lula isso tornou-se prioridade. Os recursos para o Calha Norte aumentaram e também a área de influência do projeto. Ele passou a abranger municípios que estão fora da área de fronteira, como alguns do Marajó, além dos Estados do Acre e de Rondônia. O número atual de municípios incluídos é de 151; destes, 95 na fronteira política. A área total coberta é de 10.938 quilômetros, abrangendo agora 25% do território nacional. Antes, ele só cobria 17%.
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Durbens explica que, nesta etapa, o programa, por influência da nova política de defesa nacional, foi modificado. Ele passou a preconizar a proteção e o desenvolvimento econômico e social da fronteira, levando em consideração a sustentabilidade e também a defesa das culturas existentes. "Há uma preocupação hoje concreta dos militares no que diz respeito às relações interétnicas entre militares e índios na fronteira e também com a questão da sustentabilidade. Os militares estão estudando e discutindo essas questões. Fui ao Rio de Janeiro fazer pesquisa na Escola Superior de Guerra e fiquei impressionado com a quantidade de monografias voltadas para as questões da Amazônia", relata.
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O pesquisador detectou que, com a nova ordem militar, também surgiram novas preocupações. Um exemplo é o questionamento sobre o papel das ongs na Amazônia. "Existe um discurso de que as ongs serviriam aos interesses de multinacionais, grupos farmacêuticos ou grandes laboratórios interessados na biopirataria de produtos genéticos da Amazônia. No tempo da Guerra Fria já havia a presença de ongs na Amazônia em menor proporção, mas como elas vinham de países do ocidente, que eram aliados dentro do contexto internacional, não havia uma preocupação maior com isso”, observa
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A ameaça de internacionalização da Amazônia também está inserida nesse contexto. "Mas apesar do discurso da ameaça de internacionalização e da biopirataria, não encontrei evidências de que isso estaria acontecendo de fato. É claro que os militares têm que levar tudo em consideração, diferentemente de qualquer outra categoria. Até porque, para esse tipo de conflito, a preparação não ocorre da noite para o dia", opina o pesquisador.
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Estudo global - Entre os reflexos positivos das mudanças está, na opinião do pesquisador, a aproximação entre militares e civis. "Criamos um preconceito em relação aos militares e os militares para com os civis. Com a mudança desses eventos todos no mundo, aumentaram as parcerias entre militares e civis. Eles estão se aproximando dos pesquisadores que pensam a questão militar e os militares são hoje convidados a dar palestras nas universidades. Já há um entendimento de que a defesa nacional pressupõe o diálogo com a sociedade civil e não o exclui", observa.
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Durbens optou por estudar o programa Calha Norte de uma forma mais global. Embora reconheça a importancia dos estudos de casos, sua proposta era redefinir um pouco essa forma de refletir sobre a região. "Utilizei o Programa Calha Norte para refletir sobre a questão da segurança na América do Sul, no hemisfério Sul, no Brasil e na Amazônia. Ele funcionou como uma janela que me permitiu analisar vários temas", observa o cientista político.
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Tatiana Ferreira
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